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quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

A fórmula de um grande mestre



Por Eli Antonelli

Quando o assunto é capoeira, vem à mente uma série de referências, como a ginga, a música, a história, os escravos, a cor da roupa - predominantemente branca - , o berimbau, os movimentos, as letras, a alegria... Entre tantas, existe uma figura mais que especial presente na roda: o mestre, fio condutor de toda magia existente na arte da capoeira

Em dezembro, a capoeira angola ficou órfã de uma de suas maiores referências: João Pereira dos Santos, o mestre João Pequeno – um lutador na arte e na vida, herdeiro de mestre Pastinha – que morreu aos 93 anos, na Bahia. Ainda jovem, fugiu da seca, trabalhou na construção civil durante certo tempo, enfrentou com coragem as dificuldades da cidade grande e foi carvoeiro (o “João do carvão”).

O trabalho duro e sofrido foi o alicerce para a força e a energia constantes, capazes de marcar a história na arte da capoeira, formando outros mestres e inúmeros discípulos. O portal da Capoeira (www.portalcapoeira.com) destaca uma de suas citações. Para ele, “a capoeira era boa para o corpo para mantê-lo flexível e jovem e, mais que isso, bom para desenvolver a mente.” No bairro Fazenda Couto, no subúrbio ferroviário de Salvador, Cristiane Santos, ou Nani de João Pequeno, a neta que o acompanhava nas atividades, relembra as histórias do avô. Ela conta que a fama não lhe trouxe os recursos necessários e foi com muita dificuldade que ele continuava, mesmo com idade avançada, a fazer o seu trabalho na capoeira, como o projeto Pequenos do João, que surgiu na comunidade em 2007, mais precisamente na laje da casa, no 3º andar, onde João subia com dificuldade. Nani dava aula para crianças, e mestre João Pequeno fazia questão de participar, levando seus ensinamentos a elas. “Quando começamos o projeto, ele já estava com 89 anos e, mesmo assim, fazia os movimentos. Esses momentos são inesquecíveis, pois mesmo com a idade que tinha, ele conseguiu transmitir muitos valores e plantou sementes na nova geração”, afirma Nani.




Para ela, a maior lição que o avô deixou foi a humildade. “A grande contribuição dele foi ensinar esse respeito pelo outro, mesmo com todo conhecimento e vivência que tinha da capoeira, sendo um discípulo direto de mestre Pastinha, um ícone da capoeira angola, meu avô sempre aprendia com os outros, tinha um respeito pelas pessoas”, diz. Atualmente, Nani é professora de capoeira (começou a praticar com o avô, aos 12 anos) e está concluindo a graduação em Educação Física. Sua monografia, João Pequeno de Pastinha e a volta que o mundo dá: percepção da cultura a partir da roda de capoeira angola, discute a metodologia do mestre e faz uma vinculação da importância da cultura popular com a cultura acadêmica.

Para o mestre João Pequeno, não existia a diferenciação entre os alunos e, por essa postura, chegou a ser criticado pelo trabalho que fez no Centro de Cultura Popular. “Ele tinha vários tipos de alunos, desde os mais humildes, aqueles que conseguiam, às vezes, só pagar uma matrícula, mas mesmo assim, o mestre não deixava de ensinar. Sua retribuição não era o dinheiro, mas, sim o que essas pessoas poderiam, a partir daquele conhecimento, passar à sociedade”, lembra Nani.

Famoso, ele viajou praticamente o mundo inteiro e tinha tudo para ter um comportamento diferente, mas manteve-se firme em seu propósito de levar a arte da capoeira para o maior número de pessoas possível, sempre pregando a humildade. Um fato marcante foi quando recebeu o título de Dr. Honoris Causa da Universidade Federal da Bahia (UFBA). “Fez questão de convidar as pessoas da comunidade, as crianças do projeto, os pais, os parentes... Lembro de uma senhora que disse: ‘Eu nunca imaginei que um dia entraria na UFBA e seu João me levou lá’. As pessoas viam o mestre João Pequeno ser homenageado num lugar como aquele, sabendo que ele estava lá e que fazia parte daquela comunidade simples. Perceberam que também poderiam superar as barreiras e as dificuldades, alcançar seus objetivos. Foi gratificante ver o que significou aquele momento para as pessoas da comunidade”, relembra Nani. Os ensinamentos de João Pequeno foram registrados no livro Uma vida pela capoeira, lançado em 2002. Além da obra, a neta mantém um site com todas as informações sobre o avô: www.joao-pequeno.com.

O professor de capoeira Marcelo Pinhatari mudou-se em 1997 para Salvador e conheceu a capoeira angola no Centro Esportivo de Capoeira Angola (CECA), coordenado por mestre João Pequeno desde o início dos anos 80, com a morte de mestre Pastinha – o mais conhecido e famoso mestre de capoeira angola. “Deixou em vida um testamento, ao dizer que “a eles (João Pequeno e João Grande”) eu ensinei tudo, inclusive o pulo do gato.”

Pinhatari conviveu diretamente por três anos com o mestre, até retornar ao sul, quando formou a Associação de Capoeira Angola Forte Santo Antônio que, hoje, está com 11 anos de atuação, levando as técnicas e os ensinamentos do mestre Pastinha para a região. A relação de ensino possui características próprias. “O processo pedagógico na capoeira angola envolve uma relação de comunicação corporal direta, em que estão envolvidos elementos como atenção, concentração, autoconhecimento, controle de movimentos, autocontrole, entre outros”, conta o professor. Ao longo do tempo, a Associação recebeu professores do Ceca, inclusive com a presença de Nani, em eventos realizados pelo grupo.

"MESTRE JOÃO PEQUENO ERA CRISTÃO, MAS TINHA UM PROFUNDO RESPEITO PELA HERANÇA DE MATRIZ AFRICANA. NUNCA DEIXOU DE CANTAR ALGO NA CAPOEIRA, POR SER CRISTÃO HAVIA UM RESPEITO ÀS DIFERENÇAS QUE ELE DEMONSTRAVA NA PRÁTICA"


SER MESTRE É...

Acúrsio Esteves, autor do livro A Capoeira da Indústria do Entretenimento, afirma, no artigo Ser mestre, que o título é dado pela coletividade. Isso ocorre, segundo sua análise, quando a experiência na arte, a conduta social, o respeito e, na maioria das vezes, a liderança são as condições indispensáveis para que se desencadeie esse processo de reconhecimento social. Acúrsio afirma que é comum o capoeirista deter um amplo conhecimento. “A coletividade, então, lhe confere o título, pois entende que sua sabedoria vem de um longo tempo de prática e experiência nas várias formas de conhecimento e tradições diante do grupo. Desta forma, as pessoas reconhecem a sua contribuição efetiva na transmissão, construção e modificação dos saberes, o que lhe proporciona adquirir um maior cabedal de conhecimento que lhe garante o privilégio de ser aclamado mestre.”




Muitos praticantes iniciam a capoeira ainda na primeira fase da infância. A presença e o contato com o mestre proporcionam uma vivência diferenciada, ensinamentos adicionais que a criança levará pela vida inteira. O mestre não só forma um grande capoeirista, ele não é responsável apenas pela formação de um instrutor, um professor, um contramestre ou mestre. Mais que isso, ele é responsável pela formação de um cidadão!

EMBAIXADORES DO BRASIL

PELO MUNDO

O baiano Adegmar José da Silva, o Candieiro, chamado de zelador cultural por sua atuação direta com a cultura afrobrasileira, iniciou na arte em 1986, quando teve contato com várias pessoas que lhe passaram os movimentos da luta. Seu grande mestre foi KuntaKinte, da Bahia, discípulo de mestre Ananias, que foi discípulo de Canjiquinha que, por sua vez, foi discípulo de Aberrê. Candieiro relembra que mestre João Pequeno recebeu de mestre Pastinha a missão de continuar seu trabalho de preservação da tradição dos fundamentos da capoeira angola, o que fez com muito zelo.

“Dentre os muitos ensinamentos do mestre, o que mais me marcou foi sobre o bom e o mau capoeirista. Ele dizia: ‘Não é todo jogador de capoeira que é capoeirista, como não é todo bom capoeirista que é mestre, e como não é todo mestre que é bom mestre.”

Antonio Rodrigues Santos, o mestre Sergipe, foi pioneiro na capoeira na cidade de Curitiba. Cearense, chegou ao Estado em 1973, trazendo a arte da capoeira angola em meio a um cenário, na época, dominado pela paixão por lutas marciais “Era o tempo dos filmes de judô, de karatê. Bruce Lee reinava no imaginário dos jovens.” Mestre Sergipe foi presidente da Federação dos Capoeiristas, criador da Liga da Capoeira e colaborador de livros relevantes, como um que será lançado em Singapura este ano, integrante da obra Curitiba entra na Roda, premiado pelo IPHAN. “Jogávamos juntos nos bairros de Salvador há algumas décadas, tinha um contato direto com o mestre João Pequeno. O Brasil perdeu com sua morte. Ele trouxe grandes valores na capoeira. O Governo deveria apoiar mais ainda a capoeira, as pessoas que são referências, os jovens que estão começando. Ele, aos 93 anos, viajou muito, foi um grande representante do Brasil. A capoeira é uma referência no mundo, uma pessoa vê uma apresentação e se interessa para saber mais sobre o país, quer visitar. As propagandas, por exemplo, que remetem à Bahia, muitas vezes utilizam um toque de berimbau e você imediatamente já relaciona. Nunca se deu uma valorização suficiente aos capoeiristas, verdadeiros embaixadores mundo afora”, afirma mestre Sergipe.

Formado por mestre Caiçara de Salvador, ele começou com seis anos na Bahia e, em 1968, foi declarado mestre. “Desenvolvi apresentações de capoeira no largo de Salvador, junto com o mestre Caiçara, em praticamente todas as festas, como Festa da Ribeira, Festa Lapinha, Festa da Conceição da Praia do Rio Vermelho... E foi essa experiência que me fez sobreviver na dificuldade de instalar a capoeira em Curitiba. Tive orgulho de ser um dos discípulos e hoje continuo levando no mais alto pedestal o nome do mestre Caiçara e do mestre Nô”, diz.

Com quase 30 anos de prática no Estado, já semeou a arte por vários locais, juntos com outros mestres da região e de outros que chegaram. Na obra Curitiba na Roda, ele sintetiza o que é ser mestre: “É como um semeador de uma minúscula semente que faz nascer uma enorme árvore, com raízes profundas, capaz de resistir a grandes tempestades. Quem tem que definir você como mestre é o povo. Você não pode dizer nunca que é um bom capoeirista, que é um bom mestre. Quem diz que você é mestre na realidade é a comunidade, é o povo, é a imprensa. Nunca exigi que me chamassem de mestre. Mestre é meu mestre.”

Mestre Sergipe ainda chama a atenção para a força da arte da capoeira, que já está em 164 países. “A capoeira é poderosa porque possui o suco belicoso da aranha. Uma vez que cai em sua teia, jamais consegue sair. O mesmo acontece com o ser humano, uma vez que começa a praticar a capoeira, jamais consegue deixá-la”, argumenta.


"A CAPOEIRA É UMA REFERÊNCIA NO MUNDO, UMA PESSOA VÊ UMA APRESENTAÇÃO E SE INTERESSA PARA SABER MAIS SOBRE O PAÍS, QUER VISITAR. AS PROPAGANDAS, POR EXEMPLO, QUE REMETEM À BAHIA, MUITAS VEZES UTILIZAM UM TOQUE DE BERIMBAU E VOCÊ IMEDIATAMENTE JÁ RELACIONA. NUNCA SE DEU UMA VALORIZAÇÃO SUFICIENTE AOS CAPOEIRISTAS, VERDADEIROS EMBAIXADORES MUNDO AFORA"



LIÇÕES DE VIDA

Na capoeira regional, mestre Bimba foi o maior precursor. Nasceu em 1899 e seus primeiros passos na capoeira ocorreram num período crítico, em que a arte era proibida. Ele incorporou na capoeira o batuque e a denominou Luta Regional Baiana para driblar a proibição, que vinha desde o tempo do Império. Em 1953, Getúlio Vargas assistiu uma apresentação de capoeira de mestre Bimba e seus discípulos. Enfático, afirmou que a arte deveria ser o esporte nacional e baixou um decreto que a tornou legal.




O mestre Cafuné – um dos mais fortes discípulos de mestre Bimba –, continua, aos 73 anos, a expandir seus ensinamentos. Recentemente, ele esteve no sul do país levando um pouco de sua história e atraindo capoeiristas de várias regiões do Brasil. Mestre Terra, de Bauru, no interior de São Paulo, era um deles e aguardava, ansioso, a oportunidade de conhecer um discípulo direto de mestre Bimba.

Com 28 anos de capoeira, mestre Terra desenvolveu um trabalho vigoroso, tendo, inclusive, alunos espalhando a arte da capoeira no Japão. “É uma emoção aprender com um discípulo direto de mestre Bimba. Aprendemos sempre com nossos mestres, com os mais novos, com a observação. As pessoas que passaram na minha vida no início da minha trajetória na capoeira foram mais que condutores da técnica. Meu mestre foi tudo: mestre, pai, amigo, irmão e psicólogo. Se não tivesse entrado na capoeira, não teria encontrado minha identidade e não teria desenvolvido a disciplina e postura que tenho hoje”, conta.

Mestre Cafuné trabalha com Nenel – filho de mestre Bimba – na administração da Fundação Mestre Bimba e na Filhos de Bimba Escola de Capoeira. Ele viaja para vários lugares levando seu conhecimento, energia e vivência da cultura afro-brasileira. Seus momentos com mestre Bimba podem ser conhecidos na obra Ele não faz capoeira, ele faz cafuné, lançada pelo Coletivo EDUFBA. O livro conta fatos curiosos, como no dia em que um jovem franzino e magrinho, de nome Sérgio Fachinetti Dória (mais tarde, mestre Cafuné), chegou à academia de mestre Bimba pela primeira vez. Queria assistir a um treino. Entrou e pediu para acompanhar a aula. Imediatamente, mestre Bimba pediu que retirassem o jovem dali e fechassem a porta.

Do lado de fora e muito chateado, ficou decepcionado com a grosseria. Só um tempo depois ele entenderia a jogada de marketing e o ensinamento com aquela ação. Já na calçada, ele percebeu uma placa diante da academia: “Visita: 20 mil réis/ Mensalidade: 20 mil réis”. Ali, mestre Cafuné aprendeu um grande ensinamento de mestre Bimba, o de jamais entrar num lugar sem observar melhor os costumes em sua volta, os avisos, as portas de entrada e de saída. “Esse ensinamento dura até hoje na minha vida. Bimba complementava a educação com excelência”, recorda mestre Cafuné, que relembra várias histórias da capoeira de Bimba, tempos mais distantes, em que os capoeiristas lutavam para se defender na rua, luta com navalha, luta pesada, das histórias dos lenços de seda, um pouco além da capoeira e as senzalas. Tais histórias encantaram não só as crianças e jovens, mas professores e mestres que tiraram dali ensinamentos preciosos para uma nova geração.

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